NO CORAÇÃO DA SALA DE AULA: GÊNERO E TRABALHO DOCENTE NAS SÉRIES INICIAIS

Quatro professoras e um professor. Histórias de vida e de trabalho. Observação e entrevistas. Com esse material, Marília Carvalho realiza um estudo sensível e sério do cotidiano escolar nas séries iniciais do ensino fundamental. Elaborado como tese de Doutorado, defendida na Faculdade de Educação da USP, em fins de 1998, rapidamente transformado em livro,No coração […]

Quatro professoras e um professor. Histórias de vida e de trabalho. Observação e entrevistas. Com esse material, Marília Carvalho realiza um estudo sensível e sério do cotidiano escolar nas séries iniciais do ensino fundamental. Elaborado como tese de Doutorado, defendida na Faculdade de Educação da USP, em fins de 1998, rapidamente transformado em livro,No coração da sala de aula explora questões aparentemente comuns das relações entre adultos e crianças no interior da escola primária, problematizando aspectos da realidade escolar pouco abordados e abrindo novas perspectivas de investigação sobre a cultura escolar.

As indagações “O que é ser mulher e o que é ser professora primária?” (p.15) tornam-se o eixo da análise, desdobrando-se em muitas outras questões. A mulher e o feminino passam a ser tematizados, bem como exploradas as características distintivas do trabalho docente nas séries iniciais do ensino fundamental (e aqui o cuidado é a categoria central da análise), antigo primário, que com muita clareza a autora aparta (por razões sociais e históricas) das séries finais, antigo ginásio.

A incorporação do conceito de cultura escolar para lidar com saberes e fazeres produzidos na escola permite que a instituição escolar apareça adensada no texto. Não o espaço vazio, onde se colocam conceitos, construídos externamente, na verdade, preconceitos aplicados ou aplicáveis a uma realidade desconhecida ou percebida como sem especificidade. Gênero e cuidado constituem-se e são constituídos, na escrita, pela e na escola, num movimento de apropriação e de reapropriação de valores culturais e simbólicos da sociedade, compreendida em seu sentido histórico.

O livro está dividido em seis capítulos. Os dois primeiros revelam uma redação segura e uma conceituação sensível. Preocupada em captar matizes, Marília de Carvalho dialoga com diversas aproximações teóricas, de forma a destacar similitudes e diferenças no pensamento feminista.

No capítulo 1, debruça-se sobre o conceito de gênero. A constatação de uma tensão contínua no movimento feminista ocidental entre a necessidade de construir a identidade de mulher, dando-lhe significado político sólido, e a de borrar as diferenças sexuais apontadas como causa da desigualdade entre os sexos leva a autora a embrenhar-se nas discussões do feminismo da diferença. Autoras como Nancy Chodorow e Carol Gilligan são visitadas pelo olhar atento e arguto da pesquisadora, que busca em leituras pré-modernistas elementos de apoio à sua crítica. O movimento que vai do sexo ao gênero no texto de Marília de Carvalho não se constrói pela negação de autoras e teorias discutidas, mas pela preservação de aspectos do pensamento que julga válidos para a elaboração do constructo teórico que serve de guia à sua análise ao longo do livro. Essa é uma das faces da conceituação sensível da autora. Percorrer a literatura feminista é amealhar enfoques que, trabalhados internamente, compostos e recompostos, abrem-se como possíveis no estudo da realidade, permitindo à pesquisadora recriar imagens caleidoscópicas e produzir análises contrapontísticas, sempre ancoradas social e historicamente.

No segundo capítulo, o exercício teórico desdobra-se sobre o cuidado, concebido como categoria analítica em sua forma histórica de relação adulto-criança. Novamente, Marília de Carvalho vasculha a literatura, dando provas de seu fôlego teórico e de sua capacidade de incorporar textos e ampliar o referencial de estudo. Como no capítulo anterior, faz uso de publicações nacionais e estrangeiras, pouco disponíveis a grande parte dos pesquisadores. O conceito de cuidado permite à autora perceber as relações entre professoras e professores e alunos e alunas não como mera transposição para o trabalho docente de sentimentos, valores e comportamentos maternais e domésticos, mas como uma prática pedagógica própria do ensino primário constituída no interior da cultura escolar a partir da concepção socioistórica de infância e de boa professora, apoiada em pressupostos que também subsidiam as práticas de maternidade e de boa mãe, historicamente produzidas. Nesse sentido, nega o cuidado como apenas um “elemento introduzido de fora, a partir da domesticidade”ou decorrente “de algum tipo de despreparo profissional ou técnico” (p. 232) e realça a matriz cultural comum que articula cuidado infantil e feminilidade em nossa sociedade.

Os capítulos que se seguem de descrição e análise do material empírico são marcados pela mesma eficiência e, por que não, pelo mesmo perfeccionismo de indagar constantemente o material coligido, perguntando-lhe e perguntando-se sobre outros significados, outras leituras. No terceiro capítulo a Escola Alexandrina, nome fictício, nos é apresentada. Vale destacar o relato da pesquisa empírica, em que a prática de investigação é esmiuçada, servindo de auxílio àqueles que, em fase de trabalho de campo, buscam o apoio das discussões metodológicas. No quarto capítulo, os professores Mariana, Maria Rosa, Taís, Alda e Paulo são delineados, desenhados um a um pelo traço firme da pena de Marília de Carvalho. Vida e docência se embaralham nas falas coletadas e reescritas pela pesquisadora. Na construção das personagens, dados empíricos e análise do material se entrecruzam, na certeza de que as professoras e o professor entrevistados não revivem na narrativa da autora, mas são por ela também produzidos.

Nos capítulos 5 e 6, as discussões teóricas se materializam em um estudo cuidadoso e perspicaz. A escola primária e o trabalho docente são esboçados em suas contradições e ambigüidades. A análise recusa a linearidade e insinua-se na tessitura irregular do cotidiano, abordando aspectos da cultura escolar como disciplina, seleção, exclusão e avançando no debate sobre a formação docente intramuros.

O conjunto dessas considerações leva Marília de Carvalho a concluir apontando para “a urgência da incorporação da reflexão sobre o cuidado nas pesquisas educacionais e nos cursos de formação inicial e continuada de professores” (p.235), certa de que só a compreensão do cuidado como dimensão socioistórica da prática docente, constituída na internalidade da cultura escolar, pode afastar as análises que tendem a desqualificar as atitudes de atenção e as ações concretas diante de aspectos não-cognitivos do desenvolvimento das crianças, bem como o envolvimento emocional e afetivo com alunos e alunas, como faces não profissionais do trabalho docente. Para a autora somente a incorporação do cuidado nos estudos sobre a escola primária levaria à sua legitimação como conhecimento sistemático e, portanto, passível de crítica e reflexão.

O livro, como um todo, é um convite ao leitor ou à leitora (professor, professora, aluno, aluna, pai ou mãe: ou tudo isso ao mesmo tempo), para que repense os fatos miúdos e cotidianos de suas práticas escolares, sob uma óptica social e histórica mais ampla, indagando-se a respeito de seus significados e surpreendendo-se diante das perspectivas de compreensão da realidade que se abrem.

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