NIEPHE - Mulheres e inovação docente

O projeto, que integra Faculdade de Educação da USP e Universidades francesas associadas a USPC, objetiva a elaboração de biografias de professoras que inovaram a prática docente e que permanecem praticamente desconhecidas ainda nos dias de hoje. A maioria dessas mulheres construiu sua trajetória em sala de aula. Foram professoras de escolas primárias e secundárias em zonas urbanas e rurais, criaram metodologias para o ensino de jovens e adultos ou para alunos especiais. Poucas conseguiram assumir postos de maior  visibilidade em secretarias estaduais de educação ou disseminaram suas idéias pela escrita de manuais didáticos. No seu conjunto, estas biografias exibem as múltiplas formas de ser mulher e professora em São Paulo e na França nos séculos XIX e XX.

 

NOÊMIA SARAIVA DE MATTOS CRUZ (Rio Claro, 21/09/1894 – São Paulo, 23/01/1987)

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Noêmia Cruz foi uma professora primária paulista engajada na busca pela sistematização do ensino rural oficial no Estado de São Paulo. Formada pela Escola Normal da Praça da República em 1913, exerceu o magistério ora no Grupo Escolar de Pedreira, ora no Grupo Escolar do Arouche até 1920. Nas duas primeiras décadas do século XX, o apelo à vocação agrícola do Brasil ficou mais intensa, ampliando debates em torno da falta de mão de obra especializada para o cultivo da terra, bem como da valorização das riquezas naturais do país. Noêmia Cruz cresceu nesse contexto de discursos que propagavam o Brasil como “eminentemente agrícola”.Após o pedido de demissão de Noêmia Cruz em 1920, não foi possível saber quais foram seus empreendimentos, até que, em 1932, foi convidada por Sud Mennucci, Diretor de Ensino do Estado de São Paulo, para implementar o ensino rural de forma experimental no Grupo Escolar que funcionava dentro do Instituto Butantan.

A pedagogia de Noêmia Cruz consistia em lecionar os conteúdos do programa de ensino oficial do Estado de São Paulo, relacionando-os às atividades rurais como sericicultura, cunicultura, avicultura, apicultura, silvicultura, horticultura, pomicultura e jardinagem, realizadas no Clube Agrícola criado por ela, juntamente com sua turma de 3º grau masculino. A proposta expandiu-se posteriormente para toda a escola abrangendo também as meninas.

A prática pedagógica de Noêmia Cruz dialogou com as medidas higiênicas alimentares veiculadas nas décadas de 1920 e 1930, porém enfatizando a produção do Clube Agrícola. Desse modo, ela levava adiante “seu plano de ensino ruralizado e para que as crianças se familiarizassem com o uso de hortaliças na alimentação diária” (CRUZ, 1936, p. 83). A horticultura, para a professora melhoraria o cardápio da mesa do pobre “e principalmente, do trabalhador e do operário – tão necessitados de legumes crús, frutas frescas, vegetais variados para sua saúde”.

Além da profissão docente, Noêmia Cruz exerceu outras funções. Na área educacional foi diretora do Grupo Escolar Rural de Butantan entre 1935 e 1943 e Inspetora do ensino Rural do Estado de São Paulo, em 1943, permanecendo por um ano na chefia da Assistência Técnica do Ensino Rural. Em seguida, passou a prestar serviços na Superintendência da Escola Profissional e Agrícola (1952), posto no qual requereu sua aposentadoria. Foi fundadora da Academia Paulista de Educação, onde permaneceu de 1970 a 1984, ano de seu falecimento. Noêmia Cruz escreveu o livro Educação Rural: Uma aplicação do ensino rural na escola primária, Grupo Escolar de Butantan, S. Paulo, lançando-o em 1936, no qual relatou sua experiência no Grupo Escolar Rural de Butantan. Era palestrante e fotógrafa, e por meio desta técnica pode divulgar seu trabalho, deixando um amplo acervo que hoje pertence ao Núcleo de Documentação do Instituto Butantan.

A partir de seu conhecimento e astúcia, Noêmia Cruz pode contribuir para uma nova visão do ensino rural paulista na década de 1930.

 

IRACEMA MARQUES DA SILVEIRA (Santa Rosa do Viterbo, 1900 – São Paulo, 07/01/1971)

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Iracema Marques da Silveira, irmã de Noemy Marques da Silveira, foi uma professora primária cuja trajetória se distinguiu pelo trabalho realizado na Biblioteca infantil da Escola Primária do Instituto de Educação Caetano de Campos. Iniciou seus estudos na Escola Normal do Braz em 1915, formando-se no magistério em 1918. Foi efetiva no Grupo Escolar Pari, depois substituta efetiva no Grupo Escolar Prudente de Moraes, posteriormente adjunta no Grupo Escolar Oswaldo Cruz e, finalmente, em 1930, adjunta da Escola Modelo anexa à Escola Normal da Praça. Nessa última instituição permaneceu até sua aposentadoria em 1966, assumindo a partir de 1936 a função de bibliotecária. Sua nomeação para o cargo de adjunta-bibliothecária da Escola Primária anexa à Escola Normal Modelo, entretanto, tardaria ainda três anos, sendo efetuada em 7 de novembro de 1939.

Os anos 1930 inauguraram um período fértil nos canteiros da Biblioteconomia brasileira. Em 1929, foi implantado o Curso de Biblioteconomia no Instituto Mackenzie, em São Paulo. Em 1931, reaberto o Curso da Biblioteca Nacional, extinto em 1922, após 7 anos de funcionamento. Em 1936, criada a Divisão de Bibliotecas da Prefeitura Municipal de São Paulo e a Escola de Biblioteconomia a ela vinculada, que, em 1940, foi transformada, após um ano de inatividade, em Escola de Biblioteconomia anexa à Escola Livre de Sociologia e Política. As mudanças efetuadas no campo mais amplo da Biblioteconomia combinavam-se a iniciativas de natureza mais propriamente educacional de grande visibilidade. No Rio de Janeiro, surgiram, em 1932, a Biblioteca Central de Educação (chefiada por Armando de Campos); e, em 1934, da Biblioteca Infantil (dirigida por Cecília Meireles); ambas durante a reforma educacional de Anísio Teixeira. Em São Paulo foram inauguradas, em 1931, a Biblioteca Pedagógica Central (sob responsabilidade de Achiles Raspantini); e, em 1936, a Biblioteca Infantil Municipal (a partir de 1955, denominada Biblioteca Infantil Monteiro Lobato), gerida por Lenyra Fraccaroli até sua aposentadoria em 1961.

Iracema Silveira não estava alheia a estas discussões nem distante do grupo de educadores que se associavam à difusão dos princípios da Escola Nova no Brasil. Já em 1935, fora convidada pelo Diretor de Ensino de São Paulo, para compor a comissão para a organização da Biblioteca Infantil Modelo da Diretoria de Ensino, bem como de elaborar o folheto sobre a organização de bibliotecas infantis a ser distribuído aos diretores de grupos escolares. No mesmo ano, atuou ao lado de Fernando de Azevedo e Almeida Júnior como docente do curso de férias sobre Administração escolar. Anos antes, em 1928, fez parte da Comissão organizadora da Semana de Educação, também integrada por Sampaio Dória, Lourenço Filho, Renato Jardim dentre outros.

Ao assumir a Biblioteca Infantil, já em 1936, preocupou-se com a elaboração de estatutos próprios, previu sua manutenção pela Associação Auxiliar da Escola e, a partir de julho, deu início à publicação do jornal escolar Nosso esforço, feito e dirigido pelos alunos e alunas do curso primário. Em 1937, a Biblioteca recebeu móveis novos, adequados à estatura dos leitores mirins, mandados fazer especialmente no Liceu de Artes e Ofícios. Correspondiam ao que de mais moderno se preconizava no campo educacional na defesa da liberdade de acesso aos livros e estantes por parte dos alunos e alunas, de modo a fomentar o protagonismo infantil.

Compondo este mosaico do ensino e da escola ativos, estava o trabalho dos alunos-bibliotecários. Eram responsáveis pela leitura dos livros novos e sua catalogação através de um sistema criado pela própria bibliotecária, Iracema Silveira, com vistas a facilitar a consulta dos leitores infantis. Tinham a incumbência de dar atendimento e orientação de leitura aos colegas, além de velar pela correspondência com autores de livros infantis. Esses alunos-bibliotecários eram escolhidos entre os estudantes da 3ª a 5ª série do ensino primário que se apresentavam voluntariamente para a atividade, desenvolvida fora do horário de aulas.

Supervisionados pela bibliotecária, os alunos-bibliotecários constituíam também o corpo editorial do Nosso esforço, publicado mensalmente desde sua criação, como flagrado pela fotografia a seguir. O exercício permitia ainda o desenvolvimento da capacidade redatora dos alunos e familiarizava-os com outras práticas de escrita, como a máquina de escrever. O trabalho jornalístico incluía, dentre outros, o relato dos eventos escolares, efemérides e datas comemorativas; bem como publicação de textos em auxílio às tarefas escolares, contos, poesia, charadas, indicações de leitura, reportagens sobre escritores de livros infantis e fotografias.

Com os objetivos de incentivo ao gosto da leitura, despertar a curiosidade pelos livros, enriquecer o vocabulário infantil, estabelecer contato entre os autores de livros infantis e as crianças e estreitar os laços entre a bibliotecária e os alunos, era realizada na Biblioteca Infantil a “hora do conto”. Autores convidados ou a bibliotecária narravam histórias, que os alunos eram estimulados a dramatizar, contando com o auxílio ou não da professora da classe. Incluído no quadriculado do horário da escola primária, o tempo de biblioteca assegurava a cada classe a frequência semanal ao acervo e a participação nas atividades previstas por Iracema Silveira.

Todo o trabalho na Biblioteca foi registrado. No acervo do Centro de Referência em Educação Mario Covas encontram-se os Álbuns fotográficos Nosso Esforço e Biblioteca Infantil (1937-1966), a Coleção do jornal Nosso Esforço (de 1936 a 1967); pastas contendo Dossiês didáticos; Livro de Ofícios (de 19 mai. 1939 a 11 ago. 1943); Correspondências (décadas de 1930, 1940 e 1950, enviadas e recebidas); partitura do hino Nosso Esforço (música de Frederico de Chiara e letra de Maria José, 1956) e três Livros-caixa (1936-1944; 1944-1952 e 1952-1967) que mantinham o controle da receita e da despesa da Biblioteca.

Nos anos a frente da Biblioteca infantil, Iracema colaborou com outras iniciativas ligadas à Secretaria Estadual de Educação e voltadas à promoção de bibliotecas escolares, como a Comissão Orientadora de Literatura Infanto-juvenil, que integrou em 1955. Aposentou-se em 1966 e cinco anos mais tarde veio a falecer. Solteira, não deixou descendentes.

 

ILKA BRUNHILDE LAURITO (São Paulo, 10/07/1925 – Corumbataí, 11/12/2012)

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Professora e escritora paulista. Foi aluna do Instituto de Educação Caetano de Campos em São Paulo (IECC), atuando como redatora-chefe do jornal Nosso Esforço. Licenciou-se em Letras na Universidade de São Paulo em 1949. Foi professora nas cidades do interior do estado, em Itatiba, Brotas e Campinas, e na Capital.

Em 1954, no I Festival de Cinema de São Paulo, teve contato com Sonika Bo, fundadora do Ciné-Clubs d’enfants Cendrillon (Paris), sendo um importante momento que a levou a se tornar uma estudiosa sobre cinema, infância e educação. Em 1960, encontrou um curta-metragem (Crina Branca/ Crin-Blanc de Albert Lamorisse) no Centro de Ciências, Letras e Artes em Campinas (CCLA) e resolveu projetar para seus alunos do Instituto de Educação Carlos Gomes. Muito interessada sobre o assunto, fundou em março de 1961, o Cineclubinho do CCLA promovendo sessões de filmes e debates com público infanto-juvenil.

Em seguida, passou a coordenar o projeto de Difusão para Infância da Cinemateca Brasileira em 1962. Realizou levantamentos de filmes nos consulados e filmotecas comerciais (da Mesbla, Fotóptica, Polifilmes, de cias de aviação como Scandinaviam e Pan-american, e de exploração de petróleo como a Esso e Shell), além disso, trocou correspondência com pesquisadores de outros cineclubes do Brasil (Belo Horizonte e Santos) e exterior (Portugal, Argentina, Canadá, França, Bélgica, Dinamarca, Áustria, Noruega, Hungria, Finlândia, Alemanha, Índia e outros).

Em 1964, Ilka fez um estágio na Europa com bolsa de estudos concedia pelo British Film Institute. Ela acompanhou a programação dessa instituição, da Children’s Film Foundation e da Society Film Teachers. Em seguida, na França teve contato com o trabalho feito por Sonika Bo.

No período de atuação na Cinemateca criou o Cineclubinho da Biblioteca Caetano de Campos, as sessões no Colégio Brasil-Europa, na Escola Estadual Prof. Alberto Comte e ampliou a atuação do cineclubinho do CCLA de Campinas. Ela estabelecia uma programação e critérios para nortear sua prática voltada à educação cinematográfica e por meio do cinema, documentada em relatórios e publicações temáticas sempre salientando a importância do reconhecimento do olhar e opinião dos alunos. Essas atividades de pesquisa e promoção de sessões de filmes persistiram até os anos iniciais da Ditadura Militar, quando o acesso aos filmes e a troca de contatos ficou dificultada pela intensa repressão.

Nos anos seguintes, continuou trabalhando como professora no ensino secundário e também no superior e publicou, além de poesia, contos, crônicas, livros de ficção infanto-juvenil como A menina que fez a AméricaA menina que descobriu o Brasil. Também participou de movimentos de divulgação literária como o Poesia na Praça e Poetas na Praça, em 1969 e 1975.